quarta-feira

O BOATO



Em que consiste um boato?

Trata-se de uma notícia falsa, que é amplamente divulgada. Em muitos casos, é maledicente. A origem é normalmente desconhecida.

O que é um hoax?
Em língua inglesa, o vocábulo hoax significa boato. É essa a tradução.
No entanto, quando aplicado no discurso em língua portuguesa, este termo é utilizado para designar algo mais restrito.
Inserido numa frase em português, significa boato lançado na Internet. Através de um site ou mediante encaminhamento de e-mails.

Como nasceu o boato sobre os hambúrgueres do McDonald´s?

Em 1978, começou a circular a informação de que os hambúrgueres do McDonald´s eram feitos com carne de minhoca. A matéria teria sido divulgada no programa televisivo 60 Minutos.
Tal não correspondia à verdade.
No entanto, a versão foi sendo disseminada.
Em 1982, ainda estava presente de modo intenso. A empresa convocou uma conferência de imprensa, divulgando uma carta do Secretário de Estado da Agricultura, garantido que os hambúrgueres apenas continham carne de vaca. Porém, a mentira manteve-se ainda, por muito tempo.
Segundo uma das teses, o boato teria sido criado por especialistas em sondagens, para realizarem um estudo sobre a forma como se espalham rumores.
Seja como for, havia vários factos que contradiziam estas informações.
A utilização de minhocas seria mais dispendiosa do que o uso de carne de vaca.
Ficariam por explicar as encomendas de toneladas de carne de vaca que a McDonald´s efectua.
Por outro lado, a produção de minhocas não era muito significativa, nos Estados Unidos. Provavelmente, seria insuficiente para confeccionar um tal número de hambúrgueres.

Como é que um boato se torna credível?

Em muitos casos, são associados factos reais às falsidades, para que estas pareçam mais credíveis.
Em certas situações, nem sequer se misturam falsidades.
Relatam-se uma série de acontecimentos verdadeiros, em si completamente inócuos. Mas omitem-se circunstâncias importantes.
Leva-se o destinatário a concluir algo que não corresponde à verdade.
Em 1997, o jornal “O Independente” publicou uma notícia intitulada “Aqui há Latas”. Esta última palavra era o apelido de família de um juiz de Setúbal.
Mencionavam-se vários factos verídicos. No entanto, não se contava a história toda. Erradamente, o leitor poderia retirar certas ilações sem fundamento.
Segundo o semanário, um empreiteiro encontrava-se a edificar uma moradia para esse juiz. O construtor era casado com uma advogada. A causídica tinha dois clientes acusados de tráfico de droga, envolvendo mil quilos de haxixe trazidos de Marrocos. Eles eram arguidos num julgamento submetido a tribunal colectivo, presidido precisamente por esse juiz. Os acusados foram absolvidos por falta de provas, assim como outros dois arguidos.
Tudo isto era verdade.
Podia dar-se a entender que, eventualmente, teria havido uma sentença decidida com arbitrariedade.
O repórter foi processado judicialmente e o caso terminou por acordo entre as partes, com o jornalista a apresentar desculpas e indemnizando o visado.
O problema é que não se aludia a certos aspectos, que foram omitidos na notícia.
Não se dizia que o contrato de empreitada era anterior ao julgamento. Não havia nenhuma relação entre as duas coisas.
Depois, não se enfatizava que o arguido foi absolvido por sentença deliberada por três juízes, todos eles com um voto, em igualdade de circunstâncias.
Também não se referia que o tal empreiteiro não andava a construir nenhuma casa para os outros dois magistrados.
É que sendo salientadas estas questões, já não haveria notícia, pura e simplesmente.

Por que razão é lançado um boato?

A contra-informação é uma das finalidades de um boato.
Quando determinada notícia verdadeira é desfavorável a uma pessoa, lançar um boato pode ser uma forma de contrariar as respectivas consequências nefastas.
Nesta linha, Mário Soares foi vítima de um ignóbil boato.
Em 1973, o Presidente do Conselho, Marcello Caetano, realizou uma visita de Estado a Inglaterra.
Tratava-se uma importante iniciativa.
Portugal encontrava-se isolado na cena internacional, debatendo-se com a guerra em África.
O Reino Unido – velho aliado – procedera a uma descolonização modelar, décadas antes. Nunca apoiava as posições de Portugal nas Nações Unidas.
A nível internacional, o impacto da visita oficial era quase nulo.
Mas a ida de Marcello Caetano a Londres poderia ter uma vantagem, no plano interno.
Permitiria encher os jornais portugueses de reportagens sobre a recepção do chefe do governo, numa potência mundial.
A imponência dos membros da realeza, o charme da filha de Marcello Caetano e a elegância do protocolo possibilitavam uma manobra de marketing político.
Os sectores oposicionistas pretendiam anular, ou pelo menos, minimizar estes efeitos.
Por isso, foi convocada uma manifestação de opositores ao regime, que teve lugar durante a visita àquele país, conhecido pela ampla liberdade de expressão. Um dos líderes dessa manifestação era Mário Soares, então exilado político em Paris e que se deslocou propositadamente à capital britânica para o efeito.
Importava accionar a contra-informação.
As notícias sobre a manifestação não podiam ser evitadas. Portanto, tinha de se arranjar algo de profundamente negativo sobre os manifestantes, para desacreditá-los.
A Capital, um pequeno jornal lisboeta, deu a notícia: Mário Soares pisara uma bandeira portuguesa, durante a manifestação!

Que jornal era esse?

A Capital fora fundada cinco anos antes, por Mário Neves, parente de Marcello Caetano.
Tinha sede numa minúscula casa arrendada.

Quem o dirigia?

O director do periódico era Manuel José Homem de Melo, que, uns anos mais tarde, veio a declarar-se apoiante de Soares, na sua candidatura à Presidência da República. Ele tinha o hábito de assinar "Mello" com dois éles, embora o nome verdadeiro constante do bilhete de identidade fosse um vulgar "Melo".
Era também deputado, na época em que Marcello Caetano chefiou o Governo.
Como disse o próprio Manuel José Homem de Melo, "Marcello Caetano fez-me deputado e nomeou-me director d´A Capital". Contou também que "era o único director de jornal que não ia à censura prévia".
Posteriormente, durante o exílio, no Brasil, Caetano revelou que Homem de Melo era “o mais corrupto político do tempo” do seu governo.

Como foi lançado o boato?

Como director do jornal A Capital, em 1973, Homem de Melo redigiu um violento ataque, criticando veementemente aquela atitude de Mário Soares.
Havia um pormenor importante: era tudo mentira. Curiosamente, os jornalistas do diário A Capital não tinham conseguido captar uma única fotografia do sucedido…
Mário Soares não tinha pisado bandeira nenhuma. Obviamente, nunca o faria. Era um político inteligente e com sentido de responsabilidade.
De imediato, Soares escreveu uma carta ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício. Procedeu a um desmentido formal.
Cópias da missiva circulavam, clandestinamente, em Portugal.
Todavia, o boato, lançado pelo jornal, teve mesmo grande impacto.
Treze anos mais tarde, ainda havia quem pensasse que aquela aldrabice correspondia à verdade.
Na altura da campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 1986, eu era estudante da Faculdade de Direito de Lisboa. O candidato Mário Soares acedeu a um nosso convite, para visitar o estabelecimento que ele próprio frequentara. Disponibilizou-se para responder às questões que lhe colocassem.
Uma condiscípula minha perguntou-lhe como era compreensível ele aspirar a ocupar o Palácio de Belém quando uns anos antes havia tratado daquela forma um importante símbolo nacional. Ela não estava de má fé. Acreditava genuinamente que aquilo tinha ocorrido. Acabou por apresentar publicamente desculpas, uns tempos mais tarde.

Como se chamam este tipo de mentiras?
Este tipo de mentira que o jornal A Capital publicou tem uma designação própria.
É um factóide ou, em inglês, factoid.
É algo que não existe, até ser publicado por um jornal.
O vocábulo foi criado por Norman Mailer, autor de uma biografia de Marilyn Monroe.
Humanóide significa um ser parecido com o homem. Factóide designa algo semelhante a um facto, mas que não o é, dado que se trata de uma falsidade.
Quando, em 1997, foi lançada a primeira pedra do tribunal do Barreiro, alguns jornais aludiram a que se trataria do terceiro maior Palácio da Justiça do país. Era uma invenção. Havia outros de muito maior dimensão. Existia uma finalidade política óbvia, ao tentar espalhar essa mentira. Mas nem sequer se referia se seria o terceiro, em termos de área das instalações, número de processos, magistrados, pessoal ou segundo qualquer outro critério.
A Cidade de Mount Isa, na Austrália, é, por vezes, referida como a segunda maior do mundo. É verdade que a sua rua principal se estende ao longo de 188 quilómetros! Mas a localidade não é a segunda maior do mundo. Aliás, nem sequer é a maior cidade da Austrália.

Como reagir a um boato?
O primeiro passo é identificar o autor do boato. É tarefa difícil e, por vezes, impossível.
Certa vez, um indivíduo andou a dizer que eu teria cometido uma falsificação em Macau. Isso é completamente falso.
Não tive dificuldade em saber quem contara essa mentira.
Era um homem licenciado em Direito, insatisfeito com uma decisão minha. Este aldrabão era conhecido por ter vigarizado algumas pessoas. Ele até foi notícia nos jornais nacionais, por ter enganado incautos.
O intrujão inventou esta patranha a meu respeito. A estatura moral deste mentiroso baixinho é proporcional à altura dele.

E se não for possível descobrir o autor do boato?

Deve-se pôr a circular a versão real dos acontecimentos ou informações verdadeiras, que sejam contraditórias em relação ao boato.
Certa vez, a Polícia Judiciária elaborou um retrato robô somente para desmentir um boato.
Em 1984, uma bebé recém-nascida foi raptada no Hospital Particular de Lisboa.
Era uma das mais prestigiadas maternidades privadas da Capital.
No entanto, a raptora agiu com a maior das facilidades.
Entrou na unidade hospitalar e vestiu uma bata branca, simulando ser funcionária da clínica.
Penetrou no berçário e retirou a menina, com dois dias de vida.
Desapareceu sem deixar rasto.
Foi vista por diversas pessoas. Nunca lhes passou pela cabeça que ela estivesse mal intencionada, tal era o à-vontade com que actuara.
Os pais da criança encontravam-se devastados.
Por todo o país, gerou-se uma onda de receios que situações idênticas se repetissem. Multiplicavam-se as cautelas e a ansiedade era grande entre as grávidas.
Sem grande surpresa, quase ninguém escolhia o Hospital Particular para o parto.
Foi, então, lançado um cruel boato. Era infame, para além de tudo.
Afinal, estava tudo esclarecido.
Os verdadeiros culpados já tinham sido desmascarados.
O pai da bebé tinha uma amante. Por uma razão que nunca fora bem explicada, ele pediu à amante que raptasse a sua filha que acabara de nascer. Facilitou a vida à senhora, ajudando-a a concretizar o plano.
A história circulou como sendo verdadeira durante semanas.
Tinha um efeito: desviava as atenções sobre o hospital. Diminuía as responsabilidades, fazendo-as recair sobre um hediondo progenitor.
Embora se soubesse quem ganhava com a divulgação desta aldrabice, não se conseguia agarrar o mentiroso que pusera a patranha a circular.
Então, a Polícia Judiciária decidiu contra-atacar, com a divulgação massiva de informações contraditórias. Por forma a que todos soubessem que aquela história era uma pura invenção.
Foi divulgado um comunicado, acompanhado de um novo retrato robô da raptora. Relatava-se que mais pessoas tinham sido ouvidas e que fora possível elaborar um novo desenho da face da criminosa, por forma a tentar facilitar a sua captura.
Enviava-se uma mensagem: o caso não estava deslindado, contrariamente ao que por aí se contava.
Só dois anos após o crime, a sua autora foi apanhada.
Era uma mulher profundamente perturbada, que não conseguia engravidar. O marido era funcionário da Rádio Renascença. Um dia, ele ficara satisfeitíssimo quando a mulher lhe comunicou que, finalmente, esperavam um bebé.
Durante meses, ela simulou uma gravidez, perante a família. A dada altura, disse ao cônjuge que preferia ir para casa de uns parentes e que só regressaria quando o bebé nascesse. Depois, concretizou o rapto e foi para casa. Comportou-se como mãe até ser apanhada, quando a criança já tinha completado dois anos.
A notícia invadiu os meios de comunicação social. Só a Rádio Renascença optou por não divulgá-la, para não magoar o seu funcionário, que se encontrava abaladíssimo com toda aquela situação.

Como distinguir informações reais e verdadeiros boatos?

Há um critério fundamental.
Se a informação respeitar a uma figura pública, surgirá na comunicação social, caso seja verdadeira.
Se a informação for grave (mesmo que não envolva uma figura pública), surgirá na comunicação social, caso seja verdadeira.
Os jornais, as rádios e as televisões estão ansiosos por notícias bombásticas.
Se alguém põe a circular uma informação e não a canaliza para a imprensa, é porque se trata de uma falsidade.
Por outro lado, quando essa informação começa a ser conhecida de muita gente, também os jornalistas ficam a saber. Publicam-na se for verdadeira.
Nem tudo o que os jornais escrevem é verdade. Mas tudo o que circula de boca em boca e realmente é verdade, vem publicado nos jornais.
São raríssimos os casos em que os jornais impõem contenção e abafam uma notícia.
Nas últimas décadas, em Portugal, tal sucedeu apenas uma vez, em 1996. Mesmo assim, houve um jornal que publicou a notícia.
Sabia-se que a mulher do primeiro-ministro se deslocava a Inglaterra com muita frequência. Encontrava-se gravemente doente e carecia de tratamento médico constante. António Guterres queria manter o assunto na esfera da sua vida familiar. Nem sequer comentava a matéria com os membros do Governo, salvo duas ou três excepções.
De modo que os directores dos jornais concordaram em não noticiar o assunto.
Mesmo assim, um órgão acabou por chamar à primeira página a notícia: o Tal & Qual.
Uns anos antes, em 1989, um indivíduo percorreu algumas redacções, com uma cassete de vídeo. Continha imagens comprovativas de que Tomás Taveira cometera adultério. O homem pretendia vender a cassete a quem pagasse mais. Não despertou grande atenção e apenas uma revista manifestou interesse em adquiri-la. Publicou alguns fotogramas do filme.
No entanto, a notícia foi amplamente divulgada por muitos outros jornais, sem recurso às imagens.
Portanto, sempre que a informação é verdadeira, surge nos órgãos de comunicação social.
Se uma informação já circula há algum tempo sem que isso suceda, então é falsa, garantidamente.

Qual o tratamento jurídico do boato?

Trata-se de um crime de difamação sempre que estiver em causa a honra ou o bom nome de um indivíduo ou de umas organização.
Mas caso consista somente em espalhar uma informação falsa que não afecte ninguém, não há ilegalidade.
Entre 1979 e 1991, em planícies inglesas, surgiram inúmeros círculos concêntricos, de grandes dimensões.
Os meios de comunicação social debruçaram-se intensamente sobre este fenómeno inexplicável.
Buscaram-se imensas razões para o mistério, sendo algumas de carácter esotérico e outras com recurso a meios científicos. Académicos de vários países abordaram a questão e foram realizadas investigações sérias.
Finalmente, dois reformados, Doug Bower e Dave Chorley revelaram serem eles os autores da brincadeira. Passaram todos esses anos a desenhar os círculos durante a noite, com recurso a simples alfaias agrícolas.

O que é necessário para que exista dolo ou intenção?
Efectivamente, é necessário que o mentiroso tenha a intenção de ofender a honra ou o bom nome de alguém, para que se considere cometido o crime de difamação.
Mas não é imprescindível que tenha conhecimento da falsidade dos factos. Pode estar convencido que aquelas circunstâncias realmente ocorreram.
Basta que o indivíduo profira determinadas afirmações e que as mesmas sejam atentatórias da honra ou do bom nome. Sendo possível verificar se correspondem realmente à verdade, caso não se actue desse modo, considera-se cometido o crime.
No anos oitenta, uma senhora idosa de Lisboa recebia depósitos de particulares. Remunerava-os à taxa mensal de 10%. Era a D. Branca, que, depois de se tornar famosa, viu o seu negócio ruir, deixando muitos dos depositantes sem o seu dinheiro.
Quantias elevadas em numerário foram apreendidas na casa da arguida.
Um homem tinha entregue a D. Branca vinte mil contos. Requereu a devolução dessa quantia, no âmbito do processo judicial que corria contra ela. O montante foi-lhe entregue.
Segundo se dizia, teria entregue previamente dois mil contos a um magistrado do Ministério Público e ele teria dado essa autorização para devolução dos vinte mil contos.
O jornal Expresso noticiou o assunto, dizendo que o suborno tinha sido entregue a certo magistrado.
Como isso era falso, o visado processou o jornalista, que foi condenado a uma pena de prisão, suspensa na sua execução assim como ao pagamento de uma significativa indemnização.
O jornalista defendeu-se, dizendo que a informação lhe fora fornecida por um subinspector da Polícia Judiciária, que lhe prometeu exibir posteriormente prova documental. Sucede que um mês depois de a notícia ter sido publicada, o tal polícia disse-lhe que se tinha enganado no nome do magistrado. O suspeito de corrupção era, afinal, outro.
A questão é que teria sido facílimo ao repórter obter a confirmação da identificação do magistrado em causa. Desse modo, nunca teria publicado a notícia falsa.